Monitoração Neurofisiológica Intra-operatória – quando, como, onde e por que?
O mundo vem mudando a cada dia. Esta é uma frase tão verdadeira quanto inútil, já que todos nós, em qualquer tempo, sobre qualquer tema, sempre teremos esta mesma percepção. É inerente à vida. E, obviamente, não pretendo teorizar sobre sobre todos os aspectos envolvidos nesta questão, um pouco por achar que tal assunto não cabe em um espaço como este e, muito, por ter a convicção de não ter a competência para tanto.
Mas, após todas estas ressalvas, gostaria de convidá-los (e desafiá-los) a seguir estas linhas, longas para os padrões atuais (instagram, tik-tok etc), porém necessárias para que possamos, juntos, apreciar o contexto amplo, complexo, confuso, por vezes temerário, surpreendentemente próximo, do universo das monitorizações neurofisiológicas intra-operatórias e, quem sabe, encontrar uma maneira de tornar esses procedimentos disponíveis e rotineiros para todos aqueles que virtualmente deles se beneficiam.
Raio-X do resultado pós-cirurgico de uma artrodese cervical assistida por MNIO. A utilização de técnicas de Monitorização Neurológica Intraoperatória (MNIO) minimiza dramaticamente a probabilidade de seqüelas permanentes em intervenções cirúrgicas que envolvem risco de danos neurológicos.
Tenho atuado dentro da área da Neurofisiologia Clínica por mais de trinta anos, majoritariamente no Rio de Janeiro. Nos últimos quinze anos, passamos a constatar o aumento da demanda pelos procedimentos de monitoração neurofisiológica intra-operatória; tanto assim que, desde então isto passou a fazer parte de minha rotina como Neurofisiologista Clínico.
Por mais de uma vez, tenho usado uma analogia muito particular (e pessoal), entre esses procedimentos de monitoração e a organização de uma orquestra sinfônica. Não se preocupem…não é um desvio de pensamento… me acompanhem neste mundo cirúrgico/artístico.
O primeiro personagem é o paciente; Provavelmente ninguém permanece tranquilo após receber a notícia de uma indicação cirúrgica
Em uma orquestra sinfônica, às vezes mais de 100 músicos trabalham em conjunto, cada qual com seu instrumento (alguns familiares, outos inusitados), preferencialmente conduzidos por um regente (maestro), com o objetivo de apresentar uma peça musical específica, para públicos variados, em locais ora apropriados, ora algo improvisados, mas, em todas essas situações, o objetivo é proporcionar à platéia uma experiência única, que agrade e emocione a todos.
Agora, em nosso mundo, quando pensamos em tudo o que está envolvido na programação, marcação e execução de uma cirurgia eletiva, sem dúvida, podemos começar a construir nossa analogia, inicialmente improvável.
O primeiro personagem é o paciente; provavelmente ninguém permanece tranquilo após receber a notícia de uma indicação cirúrgica, ainda que eletiva, ainda que “banal” (como nossos amigos cirurgiões costumam adjetivá-las). Em seguida, o efeito dominó… familiares, amigos, colegas de trabalho, o plano de saúde, o hospital, toda a equipe cirúrgica e anestésica, o fisioterapeuta, os advogados (por que não?); em alguns casos, o padre ou pastor, rabino ou qualquer outro líder religioso, o consultor financeiro, o gerente do banco…
O fato é que o advento de uma cirurgia interessa a uma miríade de pessoas, cada qual com seu ponto de vista, suas fantasias, seus conhecimentos técnicos ou não…
Ao mesmo tempo, poucos desses convivas irão interferir diretamente no processo de programação, marcação e execução da cirurgia em questão.
Alguns elementos são pouco flexíveis: a equipe cirúrgica, o plano de saúde (quando existe); outros, um pouco mais: a data, o hospital…
Mas, curiosamente, um dos elementos quase sempre permanece oculto, por vezes até o momento da cirurgia: a equipe de neurofisiologia clínica, responsável pela monitoração neurofisiológica intra-operatória.
Abriremos, aqui, um longo parênteses.
O século XXI vem trazendo consigo mudanças ainda mais frequentes e dramáticas que interferem diretamente nas estruturas de todas as instituições da área da saúde
A cada ano, década, século, testemunhamos um crescimento vertiginoso da quantidade de conhecimento, tecnologia, métodos diagnósticos e opções terapêuticas em todas as áreas das ciências médicas. Ao mesmo tempo, existe uma enorme concentração do conhecimento – isto quer dizer que há especialistas que sabem cada vez mais sobre menos coisas, o que, acreditem, é extremamente necessário para que obtenhamos melhores resultados, de uma forma geral.
No Brasil, desde a década de 60 do século XX, existe a Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica – SBNC, que se ocupa em coordenar e fiscalizar a atuação dos médicos que atuam nessa área. Esta Sociedade passou a congregar médicos de três outras especialidades: neurologia, neurocirurgia e fisiatria.
Inicialmente, a Neurofisiologia Clínica era considerada uma especialidade médica e a SBNC oferecia três sub-áreas para esta especialização: eletroencefalografia, eletroneuromiografia e potenciais evocados; os médicos podiam fazer uma prova para duas das três opções, somente. Alguns anos depois, surgiu a polissonografia, representando uma área adicional, qual seja, a medicina do sono. A partir de então a SBNC passou a ter quatro opções para a especialização dos seus membros e, simultaneamente, deixou de haver o limite de duas áreas.
Durante os anos 90 do século XX (salvo engano), a Neurofisiologia Clínica perdeu o status de especialidade, passando a ser considerada uma área de atuação para médicos das três especialidades anteriormente mencionadas. Abriu-se, a partir de então, uma ampla discussão sobre os possíveis significados desta perda de status (cartas para a redação).
O século XXI vem trazendo consigo mudanças ainda mais frequentes e dramáticas que interferem diretamente nas estruturas de todas as instituições da área da saúde. Muitas dessas são óbvias e tem impactos marcantes na logística, nas planilhas de custo e na disponibilidade de tecnologias e dos profissionais envolvidos na realização dos procedimentos; um exemplo? Os testes genéticos que, a cada dia, permeiam a investigação de doenças até então consideradas como sendo “propriedades” de diferentes especialidades. Em nossos dias, os geneticistas passaram a ter um papel fundamental nas investigações, diagnósticos e opções terapêuticas de todas as áreas.
Mas, a essa altura, imagino que os leitores devem estar se perguntando: onde, como, quando e por que a Neurofisiologia Clínica se encaixa nessa problemática?
A resposta é clara: no mundo dos procedimentos de monitoração (ou monitorização) neurofisiológica intra-operatória, a partir de agora, MNIO.
De volta ao tema principal…
Nos últimos anos, a MNIO passou a ser uma das áreas de atuação dentro da SBNC. Muito já se falou a respeito dessa organização. Pois vejamos: os procedimentos que compõem a MNIO são, de fato, as técnicas neurofisiológicas que são utilizadas, no lado de fora do centro cirúrgico, para o diagnóstico; assim, temos o eletroncefalograma, a eletroneuromiografia, os potenciais evocados visuais, auditivos, somatossensitivos e motores como possíveis componentes de um procedimento de MNIO.
Ora; não é difícil supor que a proficiência em um método composto por outros anteriores implique o conhecimento das técnicas básicas de cada um dos métodos neurofisiológicos. De outra forma (voltamos à analogia sinfônica), seria como pedir a alguém que não conhece teoria musical e tampouco domine um instrumento (uma harpa, por exemplo) para participar de uma orquestra sinfônica na execução de determinada peça musical.
Não há notícia de um caso semelhante no mundo das artes; imaginem a Orquestra Filarmônica de Berlim executando a Terceira Sinfonia de Brahms em Fá maior com alguém que não seja músico responsável por qualquer dos instrumentos (especialmente tratando-se de um dos solistas).
De volta ao mundo da neurofisiologia…
Caberia uma situação análoga em um ambiente como um centro cirúrgico, para a realização de um procedimento de MNIO durante uma cirurgia eletiva?
A resposta imediata deveria ser não, no entanto…
A partir deste instante, deixemos as analogias de lado e passemos a examinar esta situacão de uma forma concreta, real.
Agendar uma cirurgia eletiva em um hospital no Rio de Janeiro é uma tarefa árdua
Um paciente, após ser submetido a uma investigação médica recebe a notícia de que há uma indicação cirúrgica inequívoca para o tratamento de sua doença. Esta cena, que se repete centenas ou milhares de vezes todos os dias, inaugura, para a maioria das pessoas, uma fase repleta de apreensão, insegurança e questionamentos.
Em nosso país, os processos administrativos, burocráticos e técnicos que compõem este cenário são por demais confusos e pouco eficientes – ainda que estejamos no mundo dos planos de saúde ditos “top”.
Como tudo isto se dá? O cirurgião faz um relatório médico que é encaminhado ao plano de saúde descrevendo o quadro clínico do paciente e, ao mesmo tempo solicitando tudo aquilo que será necessário para a realizacão da cirurgia proposta.
Simultaneamente, escolhe-se um hospital, de preferência no qual o cirurgião sinta-se à vontade e, obviamente, faça parte das opcões do plano de saúde do paciente.
Voltando a dois parágrafos anteriores, quero formular uma pergunta. O que seria “tudo aquilo que será necessário para a realização da cirurgia proposta?”
Vamos, agora, particularizar esta situação, de modo que tudo fique mais claro; imaginemos tratar-se de uma cirurgia de coluna vertebral, onde a proposta é resolver um problema causado pela presença de hérnias de disco e artrose da coluna (doença degenerativa da coluna), na região cervical. Para que esta cirurgia aconteça, o cirurgião relacionou em seu relatório, diversos itens, boa parte deles sendo material cirúrgico (parafusos, hastes, espaçadores, bloqueadores de parafusos) e, entre todos, um em particular: monitorização neurofisiológica intra-operatória… aqui começa, de fato a nossa história.
“O Brasil não é para principiantes” (obrigado, maestro Tom Jobim)…Durante muitos anos (e ainda hoje, em menor proporção), empresas de material médico (aqueles parafusos, hastes, etc) também passaram a incluir no seu catálogo um item peculiar: “kit de eletrodos para MNIO”. Desta forma, o que deveria ser um serviço prestado e, portanto remunerado através de honorários médicos, tornou-se um “item de prateleira”, tal qual uma peça de metal. Dentro desta lógica, uma empresa de material médico vendia esse kit de eletrodos à fonte pagadora (usualmente um plano de saúde) e “terceirizava” a realização do procedimento de MNIO, muitas vezes à revelia da escolha do cirurgião e, notadamente, do paciente. Este, aliás, em boa parte das cirurgias, sequer fica sabendo que haverá a MNIO durante a sua cirurgia, que dirá quem será o responsável pela execução do procedimento.
Satisfeitos até aqui? Espero que não, pois os problemas só começaram.
Agendar uma cirurgia eletiva em um hospital no Rio de Janeiro já se mostrava uma tarefa árdua, mesmo antes da pandemia de Covid-19. Assim, usualmente a confirmação de que a cirurgia acontecerá no dia e hora programados no mais das vezes acontece 48 horas ou mesmo na véspera da data escolhida.
Os pacientes, principais interessados no resultado dos procedimentos, devem estar a par da existência de todas as opções que tornarão suas cirurgias mais seguras
Então, vejam: uma equipe de neurofisiologia recebe um aviso preliminar sobre uma possível cirurgia no dia específico; a partir desta comunicação a agenda fica bloqueada, pois não é possível conviver com a figura do overbooking nesses casos. Tudo é programado para atender a essa solicitação; no entanto, com frequência, na véspera ou mesmo no próprio dia da cirurgia chega uma contraordem, cancelando o procedimento agendado. Algumas vezes, sem dúvida, a motivação é pertinente: o paciente apresentou uma intercorrência clínica, houve um imprevisto considerado de força maior… mas, no dia-a-dia, os cancelamentos ocorrem por motivos fúteis. E o que é ainda mais pitoresco: não importa a razão do cancelamento; não há como pleitear a existência de uma remuneração pela dita disponibilidade; é do jogo, dizem. E como a MNIO é equiparada a um item de prateleira, o fato é que raramente alguém se lembra de avisar a um “parafuso” sobre o cancelamento de uma cirurgia. Já perdemos a conta das vezes em que descobrimos que não haverá a cirurgia (e, portanto a MNIO) já dentro do centro cirúrgico, porque ninguém lembrou de telefonar, mandar um e-mail, um WhatsApp, SMS etc etc etc.
As informações são sempre escassas e imprecisas; um rápido retorno ao exemplo da orquestra sinfônica: imaginem um pianista se dirigindo para a sala de concertos sem saber qual peça irá tocar.
Em nossa rotina, frequentemente temos apenas uma mensagem como esta: “é uma coluna cervical”. Perguntas a serem feitas a partir daí: qual a idade do paciente? Há algum déficit neurológico já instalado? Qual a via de acesso: anterior ou posterior? Qual a técnica cirúrgica escolhida? Os anestesiologistas estão a par da presenca da equipe de MNIO? Dentre muitas outras…
Mais um recorte…
Quando escolhemos um determinado concerto, o fazemos baseados numa série de fatores; primeiramente a escolha deve recair sobre uma peça da qual gostamos ou sobre alguma ainda inédita para nós, mas que despertou nossa curiosidade; depois, consideramos onde e quando acontecerá o evento; e, por último, mas nem por isso menos importante, qual orquestra apresentará o concerto e qual (ou quais) será o solista. Vocês enxergam alguma “impertinência” neste leque de escolhas quando uma pessoa decide ver uma orquestra sinfônica atuar?
No entanto, quando voltamos ou nosso cenário neurofisiológico, quase nunca o paciente é informado sobre a presenca da equipe de MNIO em sua cirurgia e, virtualmente nunca tem a oportunidade de conhecer previamente o neurofisiologista que estará no centro cirúrgico. E toda vez em que pretendemos participar minimamente de todo esse processo, invariavelmente surgem desculpas, algumas até cuidadosas, beirando a cortesia; outras, nem tanto…
Dentro deste cenário, sempre me pareceu razoável, modificar a maneira através da qual os participantes do processo interagem. Os pacientes, principais interessados no resultado dos procedimentos, devem estar a par da existência de todas as opções que tornarão suas cirurgias mais seguras; eles fazem suas escolhas e, dentre elas, é preciso que se inclua aquela que diz respeito às equipes de MNIO.
Este texto não encerra o assunto; ao contrário, a partir desta descrição inicial, passaremos a examinar em conjunto cada detalhe desse fascinante universo das cirurgias que, novamente comparado ao mundo da música clássica, deveria sempre resultar em aplausos, ao final.
Daniel de Souza e Silva – Neurofisiologista Clínico